Viva o 25 de Abril, viva a Liberdade!
Brincávamos e ouviram-se tiros, disparos de pistola
Era noite, no Vale do Ave, era tarde, no verão quente de 1975!
Criança de terna idade, encontrava-me dentro do café Ringo, onde o senhor Nunes entrara assustado, com a cara rosada e olhos bugalhudos.
O meu pai fechara de imediato a porta, quando do lado de fora se ouviam palavrões, de vozes graves, enfurecidas. Alguns murros e pontapés na porta, também!
Nunes, percebi uns anos depois, era militante do PPD e encarregado de uma fábrica das redondezas e fora expulso das instalações por um grupo de operários que chamavam “fascista” ao senhor.
O meu pai, socialista convito e seu amigo, acolhera-o.
Eu, assustado, sob proteção paterna, não percebia o que estava a acontecer. Só recordo o medo atrás do balcão!
Algum tempo depois, quando já não havia ninguém fora do café, saímos os três.
A noite estava estrelada!
O carro do meu pai, um velho Austin, estacionado em frente ao café, tinha sido sabotado: pneus rasgados e alguns vidros partidos. Lembro-me que tremia e chorava!
Talvez me tivessem roubado o pecúlio das gorjetas, do meu mealheiro, um porquinho de barro, que deixara dentro do veículo.
O meu pai segurava-me a mão para me acalmar. O senhor Nunes foi para casa, nas redondezas, e nós tivemos de o fazer também a pé, uns quatro quilómetros até ao centro de Pevidém.
Tudo aquilo era muito estranho para mim. Havia tensão no ar e o meu pai nunca largava a minha mão na caminhada, pegando-me às vezes ao colo nos zonas mais escuras, atravessando a ponte sobre o rio Ave.
Era o coração do Vale do Ave, zona da indústria têxtil pesada daqueles tempos, com milhares de operários que viviam em pequenas casas de rés do chão, quase todas iguais. Algumas ainda hoje perduram, como marca de um certo passado!
Na estrada, com piso de paralelo em granito, gasto pelo tempo, quase sem luz, o meu pai ia conversando comigo para me serenar.
Atravessávamos alamedas ladeadas por bairros e austeros pavilhões fabris, até chegarmos, próximos de casa, a um ponto onde avistamos um grupo de homens junto a um muro, fazendo algo. Eram vários!
O meu pai, que me segurava ao colo, abrandou a marcha, temendo o pior, mas logo alguém o saudou com um: “boa noite camarada” -, ao que o meu pai correspondeu.
Acabámos parados uns minutos, junto aos homens.
Passado o medo inicial, porque os senhores eram pacíficos, apreciei as pinturas que faziam, com pincéis e trinchas, com tintas em grandes baldes, de tons amarelos e vermelhos, de rostos de homens, de faces pouco amigáveis, murros levantados, com foices e martelos, estrelas, e alguns dizeres. Eram imagens fortíssimas, incríveis, para o menino assustado, mas um privilegiado, sem saber.
Eu assistia a um momento quase épico, à realização de uma grande pintura mural que perdurou por décadas, um trabalho artístico notável que refletia o período político revolucionário da época, o verão quente de 1975…
Percebi, anos mais tarde, que se tratava de uma pintura do MRPP, com uma mensagem política exortando à revolução e ao proletariado.
Fomos depois para casa, em segurança, e acabei adormecendo, com o meu pai sentado na cama, segurando-me a mão, para me tranquilizar, com a sua voz de timbre grave, carinhoso!
Ainda hoje, de quando em vez, sonho com aquele momento da minha infância profunda, que me marcou de sobremaneira!
Pevidém, terra de operários, de gente humilde, fervilhava naquele tempo, com as convulsões e as fissuras entre os grandes patrões do têxtil e suas famílias e a revolta dos trabalhadores, após anos de exploração, alavancadas por interesses político-partidários exacerbados, pós 25 de abril.
Um dia, crianças, brincávamos no largo de Santo António, e ouviram-se tiros, aparentemente disparos de pistola. Foram vários.
Sem saber o que se passava, corremos todos para casa, onde a minha mãe, procurando acalmar-nos, ia dizendo que eram foguetes das festas. Eu não acreditava!
Ficamos retidos em casa, enquanto da janela, espreitando, eu percebia, acabado o tiroteio, haver um grupo de pessoas que colavam cartazes nas paredes das casas, em grande alvoroço e palavras de ordem! Era propaganda do PCP, partido que granjeava grande simpatia entre o operariado de Pevidém.
Ainda hoje, a junta de freguesia daquela localidade do concelho de Guimarães, onde nasci, é governada pela CDU.
Todos os anos, por altura das comemorações do 25 de Abril, lembro este e outros episódios daquele tempo, como quando o meu pai, armado, foi para Braga, para um comício do PS, que acabou mal, felizmente sem consequências físicas para ele.
As forças democráticas e os seus valores, como a liberdade de expressão, acabaram por prevalecer no 25 de novembro de 1975.
Por isso, sei bem, hoje posso escrever um texto como este!
Eu era ainda muito pequeno e começava, descobri mais tarde, a acordar para o ímpeto de entender e interpretar o que me rodeava, um gérmen, quiçá, do que me tornei como cidadão e como profissional!
Pelo meio, tantas, tantas memórias, tantas “estórias” para contar, até hoje!
Armindo Mendes, 25 de abril de 2022
Imagem retirada de: https://comjeitoearte.blogspot.com/2012/04/pinturas-murais-da-revolucao-de-abril.html