Voltou logo o rosto com aquele olhar vazio
Debatia-se, com os mil obstáculos urbanos
Armindo Mendes
Acabara de tomar café numa confeitaria do Porto, igual a tantas outras, apinhada de gente desconhecida para mim!
Era ao lado da clínica. Eu saíra, há instantes, de uma consulta médica e pensava nos altos e baixos da vida… olhando a rua, por trás do vidro, e o rebuliço matinal na invicta, numa segunda-feira, algures na Boavista, com sol em todo o lado.
Passara, sem afico, os olhos no ecrã do tablet, agastado com as notícias da guerra, de um certo jornalismo que faz “escola” por estes dias… em que só o superficial importa ao rebanho, quase sem direito à diferença.
Respondera a umas quantas mensagens de trabalho, despachando assuntos e passando os olhos pelas páginas pintadas de azul do JN, em rescaldo ao FC Porto campeão, para meu contentamento.
Olhava para as pessoas que iam conversando nas mesas vizinhas, a maioria idosos, e o ar atarefado de quem servia aos clientes torradas pejadas de margarina derretendo… e galões transbordando.
Meio agoniado pelo ambiente, acabei saindo, após pagar a conta ao sisudo empregado que atendia tudo e todos ao mesmo tempo! Deu-me o troco, esticando a mão, enquanto já olhava para outro cliente!
Do lado de fora do estabelecimento, dei comigo a olhar para uma senhora de meia-idade, ao fundo da rua, impecavelmente vestida, com uma mochila amarela às costas, que andava muito devagar na rua. Percebi que era cega.
Debatia-se, com paciência, com os mil obstáculos urbanos e aproximava-se de uma passadeira para peões, em plena selva urbana.
Fique ali parado a observá-la. Quedou-se, finalmente, junto à passadeira. Parecia insegura, nervosa, até!
Quase por instinto, dirigi-me à senhora, perguntando-lhe se precisava de ajuda.
Voltou logo o rosto para mim, com aquele olhar vazio, que me tocou, e disse que apenas queria atravessar a rua.
Perguntou-me se estava vermelho para os peões. Respondi-lhe que sim!
- Não se preocupe, eu ajudo-a a atravessar, disse-lhe.
Aguardei uns instantes ao lado dela que o sinal verde para os peões acendesse, enquanto os carros iam passando, apressados e estremecendo o chão. A motas frenéticas das pizas e um carro do INEM a toda a velocidade pareceram assustá-la.
Acabei, depois, por ajudá-a a atravessar a rua, avisando-a, também, para o degrau traiçoeiro do passeio.
Do lado de lá da rua, a senhora agradeceu e seguiu o seu caminho, devagarinho, rua abaixo, ziguezagueando, ao desviar-se de um poste de iluminação e de um quiosque de raspadinhas, perante as demais pessoas que por ela passavam, indiferentes. Olhavam, mas não a viam, estavam cegas pelas sofreguidão de raspar à procura da sorte!
Eu não! Ave rara, sei lá porquê!
Fiquei mais uns instantes, parado, a olhá-la, de coração apertado, cabisbaixo, um pouco!
Será que a devia ter acompanhado para a continuar a ajudar, sabe-se lá até onde, com os meus olhos, questionei-me quando me dirigia para o meu carro estacionado nas proximidades austeras.
E lá subi a rua, devagar, olhando em volta e a pensar no que acabara de sentir.
Para os meus botões dizia ser um sortudo por poder ver! E como será o mundo dela e dos outros que não conseguem ver.
Escuro, o mundo, talvez, pensei!
Que a luz da sua alma ilumine o seu destino, ao cheirar, quiçá, uma rosa no Palácio de Cristal, ao ouvir um sussurro ao ouvido de alguém que ame e ao saborear uma cereja.
Ou, no rosto, sentir a brisa marítima, na barra do Douro, abrigada pelo nevoeiro e protegida pelo foco do farolim!
Armindo Mendes, 10 de maio de 2022