No cimo do pequeno monte, onde quase não havia casas…
Era uma vez, quando o país respirava as convulsões políticas no período pós 25 de abril de 1974, quando as televisões eram a preto e branco, quando as calças eram do tipo "boca de sino", quando os rádios emitiam em onda média, quando o Marco Paulo tinha dois amores e quando toda a gente se acotovelava nos cafés para ver a telenovela Gabriela ou o festival da canção da RTP, com o “Sobe, sobe, balão sobe”…
Terminaram as férias grandes, ainda faz algum calor, mas é quase outono, lá na escola da Ressa… no cimo do pequeno monte, onde quase não havia casas…
Quase cheira a castanhas assadas, dos magustos ou a broa de milho acabada de cozer no forno da casa do lavrador, ao lado da escola.
Meninas e meninos, elas de vestidinhos coloridos, eles de sandálias quase rotas… alguns de mãos dadas, em grande algazarra e correrias, naquele estradão de terra, vindos do Penedo, da Barroca, do Barreiro, da Pena Amarela, de Mouril ou da Moura e de outros recantos de Pevidém…
… Com aquele cheiro a eucalipto, das árvores atrás da escola, que bom chegar, de sacolas às costas, com os livros, as sebentas e os lápis… Alguns de bata branca, outros até um pouco nervosos, no primeiro e inesquecível dia de aulas!
Lá dentro das salas austeras da escola, os quadros negros, o giz branco, as tabuadas, os ditados, as redações, os temidos problemas de matemática, os rios e as serras de Portugal para decorar, mas também as nossas professoras, as nossas segundas mães, com as quais aprendemos a contar, a escrever, a fazer contas de somar e de multiplicar e a sermos, acima de tudo, boas pessoas…
A escola da Ressa era fria e pobre!
No Inverno, o vento agitava, zangado, o arvoredo em redor.
Tínhamos medo, às vezes!!!
Sim, as casas de banho eram retretes e as carteiras eram de madeira tosca e polida pelo tempo de Salazar. Mas nas janelas havia vasinhos floridos e nas paredes os mapas de Portugal, um crucifixo e o “a e i o u” com os quais aprendemos a ler…
Por lá, resplandecia o calor e a alegria dos corações das carinhas de crianças que éramos, dos meninos e das meninas, com tantos sonhos, que as fotografias de então, tiradas pelo meu saudoso pai, registaram para a posterioridade…
No recreio, jogávamos à bola, ao peão, à macaca ou líamos histórias aos quadradinhos do Pateta e do Patinhas ou as “Aventuras dos “Cinco” ...
E também se lanchava pão com marmelada, para os privilegiados…
E duas mãos cheias de quase nada, a barriga vazia talvez, para os desafortunados, que eram muitos, em tempos de um Portugal de bolsos rotos e muitas desigualdades…
Aquilo, em frente à escola, era um estradão, onde se brincava, às vezes enlameado, onde até passavam os carros, mas não havia medo!
O Volkswagen Carocha azul, da polícia, parava para os meninos poderem marcar o golo do Vitória!
Havia lá uma caldeira enferrujada, para a qual subíamos, para sermos índios, cowboys, tarzans, panteras cor-de-rosa, popeyes ou heidis, nas montanhas, de cabelos ao vento, como víamos, ao sábado à tarde, na série “Uma casa na Pradaria”.
Às vezes, ousados, subia-se ao Penedo da Lapa, ao estilo aventureiro da série “Os Pequenos Vagabundos”, onde até fizemos uma cabana com ramos de árvores e alguns farrapos, para, lá dentro, acender uma vela e o mais atrevido contar uma história de terror que fazia tremer de medo.
Que aventura, aquela!
Não havia telemóveis, tablets, email, nem redes sociais, mas havia uma vontade imensa de brincar, uma imaginação colorida para fazer aviões de papel com folhas das sebentas, andar de carrinhos de rolamentos, vestir as bonequinhas de cabelos dourados ou brincar aos doutores, meninos e meninas, em descobertas tão inocentes…
Aqueles meninos éramos nós, tão felizes… E não sabíamos…
Mas também havia aqueles dias maus, como quando as professoras davam reguadas e outros castigos, por erros nos ditados ou nas contas de dividir…
Foram circunstâncias dos costumes de então que nos fizeram crescer, sermos mais fortes, sem ressentimentos, para com esse passado e com as educadoras, às quais agradecemos, hoje, do fundo do coração, por tudo o que fizeram por nós!
Depois, quando acabavam as aulas, fizesse chuva ou fizesse sol, saía-se correndo, a maioria para o Penedo e para o Barreiro e para outros destinos.
À porta da escola, não estavam os carros dos papás, como agora, mas havia forças para regressar a casa, em convívio, sem cansaço, uns com os outros.
Sim, havia os deveres para fazer – hoje chamam-se trabalhos de casa – mas nada que nos fizesse perder os desenhos animados ou o “Carrossel Mágico” que dava às seis e meia da tarde, nas televisões a preto e branco.
O dia passava devagar naquele tempo…
Lá em casa, em família, havia meninas e meninos pouco abastados, mas felizes, para depois adormecerem e acordarem no dia seguinte, voltando alegres à querida escolinha da Ressa, para mais uma jornada de aprendizagem e tantas brincadeiras que se pintavam com os marcadores coloridos numa folha branca perfumada…
Ficaram, assim, as saudades, neste exercício de memórias que fui buscar ao meu baú grisalho, de recordações de tempos que já lá vão…
O tempo que passou não volta mais, mas recordar, ao estilo “Era uma Vez”, também é viver, como escreveu o poeta…
Meninos e Meninas fomos, hoje pais e avós somos, mas, para sempre, Crianças seremos!!!
As cabanas da vida guardam segredos de sussurros sem culpa, de memórias de tardes com tanto sol… que a chuva de outono atirou… levada abaixo…
Ficaram as brumas que soçobram a cidade e a aldeia e os corvos testemunhas de devaneios idos, de tanta alma, de olhares luminosos, ousados, numa pauta de notas maiores, inscritos nas aldeias de xisto da vida!
Na minha memória, a Páscoa, nos idos anos 70 do século passado, era a fragância de flores dos tapetes coloridos nas estradas e caminhos que recebiam o Compasso, na aldeia...
Era o dia mais cheiroso do ano no meu lugar de Santo António, todas as primaveras, na idade da inocência.
Páscoa eram os asseios frenéticos da casa, dias antes, sob a batuta da minha mãe. Encerar o soalho da sala era tarefa dura, mas necessária, para aquele brilho e cheirinho especiais!
As idas à feira para comprar roupa e sapatos eram outro costume da época.
Páscoa era estarmos todos penteadinhos pela mamã, cheirosos com perfumes baratos, com camisa amarela de vastos colarinhos, calça vincada branca boca de sino e sapatos de verniz azul, tudo a estrear, como mandava o ritual, enquanto saboreávamos umas amêndoas cobertas de açúcar ou uns coelhinhos de chocolate.
Páscoa era, manhã cedo, ensonados ainda, receber o Compasso Pascal em casa, sonoramente anunciado, ao longe, pelos agudos das sinetas prateadas, que entravam felizes pela janela da sala, entre as cortinas tipo véu de noiva, balançando à brisa matinal.
Seguia-se o momento de beijar a imagem de Cristo, num crucifico adornado com flores pequeninas.
E o sorriso maroto para mim do senhor reitor, de vestes estranhas e dizeres impercetíveis, para a minha tenra idade.
Ele também nos salpicava com água, que a minha mãe dizia ser sagrada, mas só para os meninos bem-comportados, pensava eu, de mãos nos bolsos, a fazer figura, como os homens.
Lá em casa, a mesa da sala estava coberta por uma toalha branca, onde repousavam pequenos pratos tirados da cristaleira só naquele dia, com pedaços de pão-de-ló, doces brancos e muitas amêndoas. Também umas fatias de folar e cálices de vinho do Porto.
Por entre saudações calorosas e votos de saúde, oferecia-se aos mordomos do cortejo doces para saciar o apetite e metia-se um envelope branco num saco de pano trazido por um dos elementos mais jovens do grupo.
O azul do céu naquele dia era mais intenso do que nos outros domingos
As famílias, quase todas numerosas, saíam à porta das suas casas, impecavelmente limpas nas vésperas para receberem o Senhor, para saudar o singelo Compasso, exibindo colchas nas janelas e sacadas. Alguns lançavam pétalas de flores.
Os vizinhos conversavam, enquanto se ouviam nos céus os estrondos dos foguetes festivos lançados das redondezas do coreto, explicava o vizinho do lado.
Era uma atmosfera única, com os traquinas a correr para os campos, procurando as canas.
O azul do céu naquele dia era mais intenso do que nos outros domingos, dizia o meu pai, brincando. Os jarros da Zirinha eram tão belos no canteiro e os amores também.
Páscoa era ir depois ao padrinho Armindo, no velho Sinca 1100, do meu pai. Da rua D. João I trazia uma enorme rosca de trigo, que envergava ao pescoço, e uma nota de 100 escudos, com a imagem de Camilo e os seus bigodes, para o mealheiro, além da bênção e um saco de amêndoas de marca Vieira, bem saborosas.
No tasco do meu avô, onde éramos recebidos, a minha madrinha e tia Maria dizia, gargalhando sempre, que eu estava muito bonito e moreninho, e lá me dava uns rebuçados de café e um ovo de Páscoa, como bónus.
Nas ruas de Guimarães, cavalheiros engravatados engraxavam os sapatos à porta do café Milenário e meninos corriam alegres na calçada do Toural, entre as pombas que voavam sobre os jardins floridos e os bronzes altaneiros das igrejas barrocas da cidade-berço, badalando.
No caminho, de regresso, nas várias aldeias, íamos avistando outros compassos pascais que saudávamos com as mãos, a partir do carro, de vidros abertos.
Era muito bonito! Tantas sinetas tocando… Eu adorava e o meu pai também!
Páscoa era sentarmos à mesa ao almoço e comermos cabrito assado e arroz de forno, até não se poder mais.
Aqueles cheiros que da cozinha nos aguçavam o apetite e o meu pai sempre a chamar-me “Mindocas”, para me provocar uma risada de mimo. Sentava-me, à sua direita na mesa. À cabeceira, ele segurava por vezes a minha mão pequena. Ainda hoje sinto aquele toque quente!
E ainda vejo na mesa, em frente a mim, a minha mana com belas tranças e o meu mano mais novo desdentado, mas feliz, saboreando mais uma guloseima.
Páscoa era, à sobremesa, ter pão-de-ló tão fofo, doces brancos, leite-creme queimado sabendo a limão e poder provar um cheirinho de vinho do Porto Três Velhotes, o preferido lá em casa! Ah!!! Também havia pudim francês, para meu deleite.
Páscoa era alegria em família, o carinho do meu pai e o sorriso e a atenção da minha mãe, sempre muito bem arranjada.
Páscoa era, à tarde, sair ao largo para brincar com as crianças das redondezas, com mil cuidados para não estragar a roupa nova.
Jogar à bola estava expressamente proibido para não estragar os sapatos novos, que só voltaria a calçar aos domingos para ir à missa.
O jogo do lenço era um dos preferidos da pequenada. A macaca também, até ao lanche, com Sumol à mesa, bicas de pato e tantas amêndoas.
Páscoa era, ao fim da tarde, ir à igreja ver o recolher dos vários grupos de compassos pascais que tinham percorrido a terra, saudados pelos sinos a repique lá no alto da torre e por uma multidão de gentes alegres, como nós.
Quando éramos crianças, era tudo mais saboroso e mais cheiroso, e a Páscoa também, naquela e noutras primaveras!
Por estes dias de altos e baixos, recordo os meus queridos pais, ambos já na paz do Senhor, aos quais dedico este pequeno texto, agradecendo tudo o que de bom fizeram pelo “Mindocas” da casa lá de Pevidém: eu!
Há músicas intemporais, que nos acompanham ao longo dos anos, umas vezes porque as associamos a momentos especiais das nossas vidas que queremos de alguma maneira perpetuar na nossa memória, outras, simplesmente, por serem tão bonitas, que nos proporcionam um prazer imenso ouvi-las, como esta de Joan Baez – “Diamonds and Rust”, que me remete para os tempos de menino, nos 70`s, quando ouvia no rádio do carro com os meus pais.