Quando a noite cai
À sombra, como guiga à bolina
Palavras, forma de esboços de nós
Letras, formas de fios de água do peito
Rascunhos, formas de rabiscos a sós
Folhas brancas, formas de desabafo a eito.
Quando a noite cai, a luz esvai-se
Quando a noite cai, o semblante esmorece
Quando a noite cai, a vontade contrai-se
Quando a noite cai, o coração amolece.
Luz apagada, olhamos para dentro
Luz apagada, as nossas entranhas
Luz apagada, âmago em nós, ao centro
Luz apagada, rodopios em nós, suplicamos manhãs.
Sol raiou, acordar sobressaltado
Sol raiou, noite, ao postigo desassossego passou?
Sol raiou, vulto ao espelho, lavado
Sol raiou, não sei para onde vou.
Na rua, olho tudo, vejo pouco
Na rua, dou passos, sem em andar a pé
Na rua, o jornal do mundo louco
Na rua, como Pascoaes, tomo café.
Sigo a alameda, à beira rio, para a neblina
Sigo, costas ao sol, para o açude
Sigo à sombra, como guiga à bolina
Sigo inquieto, como poeta, do que não pude.
Sento no muro, Tâmega, confidente
Sento, procuro papel e caneta
Sento para escrever, sem jeito fluente
Sento, traço espírito meu em silhueta.
O Covelo, nas águas, espelho de nós
O Covelo dos gansos idos para algures
O Covelo das inundações sonhos levar
O Covelo dos arcos da ponte para nenhures.
Escrita de coisas em dia sem graça
Escrita sem nexos, após noite sem parar
Escrita de estados que alma perpassa
Escrita que o tempo vai esbater, sem obliterar…
Armindo Mendes, 23 de março de 2022