Abrandei, acabando por me quedar, sentado no empedrado junto à porta, abrigado da canícula, ouvindo
Saí de casa, calção azul marinho vestido, sandálias nos pés, num outono, quente ainda.
Camisa meia-manga, amarelo torrado, de colarinhos abastados, banhinho dado, perfumado, penteadinho pela mamã, sacola da escola às costas, com livros e cadernos a cheirar a novos e lápis bem afiados. Ainda lembro aquele cheiro.
Sorriso nos dentes, um friozinho na barriga, menino petiz eu era, de partida para nova odisseia!
Era o primeiro dia da escola, onde iria finalmente apender a ler letras, o que tanto desejava.
Já não teria de pedir à mãe ou ao pai para me dizerem o que estava escrito nos letreiros das lojas.
Eu sabia que era um dia importante, porque disso falara antes com o meu pai, que, ao levantar da cama, lavando os dentes comigo, me encorajou com a sua voz serena para mim.
“Vai correr bem, Mindocas!”, disse, afagando-me o cabelo preto.
Já rua acima, caminhava feliz no empedrado da rua da Moura, onde habitualmente jogava à bola e outras brincadeiras, a caminho da escola da Ressa, olhando, ouvindo as folhas que pisava, cheirando, sentindo tudo à minha volta, sem saber, prelúdio de comportamento para uma vida vindoura.
Lembro o casario da aldeia, de paredes de granito, os carros que passavam, as motorizadas que largavam fumo e as mulheres que, apressadas, varriam a soleira das casas, de portas abertas, como era costume, para depois irem para a fábrica, em grupos.
À passagem, algumas sorriam para mim e acenavam, pedindo para eu ter cuidado com os carros!
Sabiam que eu ia para a escola, pois eu exibia, orgulhoso, a sacola com a imagem do Sandokan – o herói do momento - que o meu pai me ofertara, na véspera, numa ida a Guimarães.
Tudo me parecia intenso, as ramadas com uvas pintadas, as árvores de tons quentes, as fábricas no horizonte com suas altas chaminés de tijolos, os portões grandes da casa da Pena Amarela, o gado pastando no campo do Barreiro, antes de chegar ao Penedo, lugar de muitas casas baixinhas, de poucas assoalhadas, onde vivam as famílias de operariado do Vale do Ave, gente humilde, trabalhadora, de muitos filhos, como eu e tantos meninos, dos idos 70`s.
Em certas casas, as janelas tinham malgas com marmelada e as portas de madeira estavam franqueadas devido ao calor. Muitos viam televisão, a Escrava Isaura, telenovela brasileira que dava nos ecrãs a preto e branco àquelas horas no segundo canal, outros ouviam rádio, a Renascença, talvez.
Os sons atraíam a minha atenção e, caminhando, ia espreitando para dentro das casas, à procura de algo.
No bolso levava uns rebuçados de café, que ia chupando.
E, à direita, no caminho, no início da rua da escola, houve uma casa de onde saía uma melodia que eu gostava muito, porque, às vezes, tocava no rádio do carro do pai.
Abrandei, acabando por me quedar, sentado no empedrado junto à porta, abrigado da canícula, ouvindo “Depois do adeus”, interpretada por Paulo de Carvalho, num volume generoso.
Brincando com as pedrinhas da calçada com um pau que encontrara, enquanto magotes de garotos passavam, degustava cada acorde, procurava entender cada palavra da letra, que me soava difícil!
“Quis saber quem sou, o que faço aqui…”, soava a canção, que me interpelava.
Fiquei por ali uns minutos, até acabar a música, que era épica, sem eu saber!
Sem vontade, levantei-me e retomei a caminhada, cantarolando a melodia, o que me embalou até à escola, onde fui chamado por uma senhora para me dirigir a uma sala e vestir uma bata branca, com o meu nome bordado, que trazia na sacola.
Oficialmente, começara o meu primeiro dia de escola, sentado numa carteira de madeira gasta pelo tempo, olhando a minha primeira professora, a dona Virgínia, uma jovem sentada numa secretária onde se podia ver um jarro com flores cheirosas.
A professora era meiga e sorriu para mim, mas aquela música ressoava ainda no meu consciente…
Ao fim da tarde, no regresso, passando de novo pela casa, a porta estava fechada e não se ouvia nada, o que me deixou tristonho. Nos dias seguintes, a música não tocou!
Anos depois, já adolescente, entendi a música e um dos seus significados.
Fora, como se sabe, o sinal usado, no Rádio Clube Português, para, a partir dos quartéis, o início de rebelião dos capitães de abril de 1974, na Revolução dos Cravos, que ditou a liberdade, com a qual me fiz homem!
Hoje, sempre que ouço “E depois do Adeus”, vêm-me à memória aquelas sensações, daquele início de tarde de outono, poucos anos depois da revolução, quando ouvi a canção de abril, com tanta emoção, embora, menino ainda, desconhecendo sua importância histórica.
Mas aconteceu na minha terra natal e eu, menino, inscrevi na minha memória, para todo o sempre!
Brincávamos e ouviram-se tiros, disparos de pistola
Era noite, no Vale do Ave, era tarde, no verão quente de 1975!
Criança de terna idade, encontrava-me dentro do café Ringo, onde o senhor Nunes entrara assustado, com a cara rosada e olhos bugalhudos.
O meu pai fechara de imediato a porta, quando do lado de fora se ouviam palavrões, de vozes graves, enfurecidas. Alguns murros e pontapés na porta, também!
Nunes, percebi uns anos depois, era militante do PPD e encarregado de uma fábrica das redondezas e fora expulso das instalações por um grupo de operários que chamavam “fascista” ao senhor.
O meu pai, socialista convito e seu amigo, acolhera-o.
Eu, assustado, sob proteção paterna, não percebia o que estava a acontecer. Só recordo o medo atrás do balcão!
Algum tempo depois, quando já não havia ninguém fora do café, saímos os três.
A noite estava estrelada!
O carro do meu pai, um velho Austin, estacionado em frente ao café, tinha sido sabotado: pneus rasgados e alguns vidros partidos. Lembro-me que tremia e chorava!
Talvez me tivessem roubado o pecúlio das gorjetas, do meu mealheiro, um porquinho de barro, que deixara dentro do veículo.
O meu pai segurava-me a mão para me acalmar. O senhor Nunes foi para casa, nas redondezas, e nós tivemos de o fazer também a pé, uns quatro quilómetros até ao centro de Pevidém.
Tudo aquilo era muito estranho para mim. Havia tensão no ar e o meu pai nunca largava a minha mão na caminhada, pegando-me às vezes ao colo nos zonas mais escuras, atravessando a ponte sobre o rio Ave.
Era o coração do Vale do Ave, zona da indústria têxtil pesada daqueles tempos, com milhares de operários que viviam em pequenas casas de rés do chão, quase todas iguais. Algumas ainda hoje perduram, como marca de um certo passado!
Na estrada, com piso de paralelo em granito, gasto pelo tempo, quase sem luz, o meu pai ia conversando comigo para me serenar.
Atravessávamos alamedas ladeadas por bairros e austeros pavilhões fabris, até chegarmos, próximos de casa, a um ponto onde avistamos um grupo de homens junto a um muro, fazendo algo. Eram vários!
O meu pai, que me segurava ao colo, abrandou a marcha, temendo o pior, mas logo alguém o saudou com um: “boa noite camarada” -, ao que o meu pai correspondeu.
Acabámos parados uns minutos, junto aos homens.
Passado o medo inicial, porque os senhores eram pacíficos, apreciei as pinturas que faziam, com pincéis e trinchas, com tintas em grandes baldes, de tons amarelos e vermelhos, de rostos de homens, de faces pouco amigáveis, murros levantados, com foices e martelos, estrelas, e alguns dizeres. Eram imagens fortíssimas, incríveis, para o menino assustado, mas um privilegiado, sem saber.
Eu assistia a um momento quase épico, à realização de uma grande pintura mural que perdurou por décadas, um trabalho artístico notável que refletia o período político revolucionário da época, o verão quente de 1975…
Percebi, anos mais tarde, que se tratava de uma pintura do MRPP, com uma mensagem política exortando à revolução e ao proletariado.
Fomos depois para casa, em segurança, e acabei adormecendo, com o meu pai sentado na cama, segurando-me a mão, para me tranquilizar, com a sua voz de timbre grave, carinhoso!
Ainda hoje, de quando em vez, sonho com aquele momento da minha infância profunda, que me marcou de sobremaneira!
Pevidém, terra de operários, de gente humilde, fervilhava naquele tempo, com as convulsões e as fissuras entre os grandes patrões do têxtil e suas famílias e a revolta dos trabalhadores, após anos de exploração, alavancadas por interesses político-partidários exacerbados, pós 25 de abril.
Um dia, crianças, brincávamos no largo de Santo António, e ouviram-se tiros, aparentemente disparos de pistola. Foram vários.
Sem saber o que se passava, corremos todos para casa, onde a minha mãe, procurando acalmar-nos, ia dizendo que eram foguetes das festas. Eu não acreditava!
Ficamos retidos em casa, enquanto da janela, espreitando, eu percebia, acabado o tiroteio, haver um grupo de pessoas que colavam cartazes nas paredes das casas, em grande alvoroço e palavras de ordem! Era propaganda do PCP, partido que granjeava grande simpatia entre o operariado de Pevidém.
Ainda hoje, a junta de freguesia daquela localidade do concelho de Guimarães, onde nasci, é governada pela CDU.
Todos os anos, por altura das comemorações do 25 de Abril, lembro este e outros episódios daquele tempo, como quando o meu pai, armado, foi para Braga, para um comício do PS, que acabou mal, felizmente sem consequências físicas para ele.
As forças democráticas e os seus valores, como a liberdade de expressão, acabaram por prevalecer no 25 de novembro de 1975.
Por isso, sei bem, hoje posso escrever um texto como este!
Eu era ainda muito pequeno e começava, descobri mais tarde, a acordar para o ímpeto de entender e interpretar o que me rodeava, um gérmen, quiçá, do que me tornei como cidadão e como profissional!
Pelo meio, tantas, tantas memórias, tantas “estórias” para contar, até hoje!
Armindo Mendes, 25 de abril de 2022
Imagem retirada de: https://comjeitoearte.blogspot.com/2012/04/pinturas-murais-da-revolucao-de-abril.html