Na Páscoa, os jarros da Zirinha eram tão belos…
Na minha memória, a Páscoa, nos idos anos 70 do século passado, era a fragância de flores dos tapetes coloridos nas estradas e caminhos que recebiam o Compasso, na aldeia...
Era o dia mais cheiroso do ano no meu lugar de Santo António, todas as primaveras, na idade da inocência.
Páscoa eram os asseios frenéticos da casa, dias antes, sob a batuta da minha mãe. Encerar o soalho da sala era tarefa dura, mas necessária, para aquele brilho e cheirinho especiais!
As idas à feira para comprar roupa e sapatos eram outro costume da época.
Páscoa era estarmos todos penteadinhos pela mamã, cheirosos com perfumes baratos, com camisa amarela de vastos colarinhos, calça vincada branca boca de sino e sapatos de verniz azul, tudo a estrear, como mandava o ritual, enquanto saboreávamos umas amêndoas cobertas de açúcar ou uns coelhinhos de chocolate.
Páscoa era, manhã cedo, ensonados ainda, receber o Compasso Pascal em casa, sonoramente anunciado, ao longe, pelos agudos das sinetas prateadas, que entravam felizes pela janela da sala, entre as cortinas tipo véu de noiva, balançando à brisa matinal.
Seguia-se o momento de beijar a imagem de Cristo, num crucifico adornado com flores pequeninas.
E o sorriso maroto para mim do senhor reitor, de vestes estranhas e dizeres impercetíveis, para a minha tenra idade.
Ele também nos salpicava com água, que a minha mãe dizia ser sagrada, mas só para os meninos bem-comportados, pensava eu, de mãos nos bolsos, a fazer figura, como os homens.
Lá em casa, a mesa da sala estava coberta por uma toalha branca, onde repousavam pequenos pratos tirados da cristaleira só naquele dia, com pedaços de pão-de-ló, doces brancos e muitas amêndoas. Também umas fatias de folar e cálices de vinho do Porto.
Por entre saudações calorosas e votos de saúde, oferecia-se aos mordomos do cortejo doces para saciar o apetite e metia-se um envelope branco num saco de pano trazido por um dos elementos mais jovens do grupo.
O azul do céu naquele dia era mais intenso do que nos outros domingos
As famílias, quase todas numerosas, saíam à porta das suas casas, impecavelmente limpas nas vésperas para receberem o Senhor, para saudar o singelo Compasso, exibindo colchas nas janelas e sacadas. Alguns lançavam pétalas de flores.
Os vizinhos conversavam, enquanto se ouviam nos céus os estrondos dos foguetes festivos lançados das redondezas do coreto, explicava o vizinho do lado.
Era uma atmosfera única, com os traquinas a correr para os campos, procurando as canas.
O azul do céu naquele dia era mais intenso do que nos outros domingos, dizia o meu pai, brincando. Os jarros da Zirinha eram tão belos no canteiro e os amores também.
Páscoa era ir depois ao padrinho Armindo, no velho Sinca 1100, do meu pai. Da rua D. João I trazia uma enorme rosca de trigo, que envergava ao pescoço, e uma nota de 100 escudos, com a imagem de Camilo e os seus bigodes, para o mealheiro, além da bênção e um saco de amêndoas de marca Vieira, bem saborosas.
No tasco do meu avô, onde éramos recebidos, a minha madrinha e tia Maria dizia, gargalhando sempre, que eu estava muito bonito e moreninho, e lá me dava uns rebuçados de café e um ovo de Páscoa, como bónus.
Nas ruas de Guimarães, cavalheiros engravatados engraxavam os sapatos à porta do café Milenário e meninos corriam alegres na calçada do Toural, entre as pombas que voavam sobre os jardins floridos e os bronzes altaneiros das igrejas barrocas da cidade-berço, badalando.
No caminho, de regresso, nas várias aldeias, íamos avistando outros compassos pascais que saudávamos com as mãos, a partir do carro, de vidros abertos.
Era muito bonito! Tantas sinetas tocando… Eu adorava e o meu pai também!
Páscoa era sentarmos à mesa ao almoço e comermos cabrito assado e arroz de forno, até não se poder mais.
Aqueles cheiros que da cozinha nos aguçavam o apetite e o meu pai sempre a chamar-me “Mindocas”, para me provocar uma risada de mimo. Sentava-me, à sua direita na mesa. À cabeceira, ele segurava por vezes a minha mão pequena. Ainda hoje sinto aquele toque quente!
E ainda vejo na mesa, em frente a mim, a minha mana com belas tranças e o meu mano mais novo desdentado, mas feliz, saboreando mais uma guloseima.
Páscoa era, à sobremesa, ter pão-de-ló tão fofo, doces brancos, leite-creme queimado sabendo a limão e poder provar um cheirinho de vinho do Porto Três Velhotes, o preferido lá em casa! Ah!!! Também havia pudim francês, para meu deleite.
Páscoa era alegria em família, o carinho do meu pai e o sorriso e a atenção da minha mãe, sempre muito bem arranjada.
Páscoa era, à tarde, sair ao largo para brincar com as crianças das redondezas, com mil cuidados para não estragar a roupa nova.
Jogar à bola estava expressamente proibido para não estragar os sapatos novos, que só voltaria a calçar aos domingos para ir à missa.
O jogo do lenço era um dos preferidos da pequenada. A macaca também, até ao lanche, com Sumol à mesa, bicas de pato e tantas amêndoas.
Páscoa era, ao fim da tarde, ir à igreja ver o recolher dos vários grupos de compassos pascais que tinham percorrido a terra, saudados pelos sinos a repique lá no alto da torre e por uma multidão de gentes alegres, como nós.
Quando éramos crianças, era tudo mais saboroso e mais cheiroso, e a Páscoa também, naquela e noutras primaveras!
Por estes dias de altos e baixos, recordo os meus queridos pais, ambos já na paz do Senhor, aos quais dedico este pequeno texto, agradecendo tudo o que de bom fizeram pelo “Mindocas” da casa lá de Pevidém: eu!
13 de abril