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Marca d'Água

Marca d'Água

06
Fev23

Diário de Bordo


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Por entre tempestades e tormentas, a caravela logrou escapar vezes sem conta ao naufrágio que Velhos do Restelo da velha urbe lhe pressagiaram.

 
Alguns anos volvidos sobre o desembarque, numa enseada de águas calmas, a bordo de uma embarcação tipo “casca de noz”, partiu-se para uma “epopeia”com muitas milhas para contar e poucas bolinas com que contar.
 
No horizonte, desenhava-se, primeiro o Bojador, depois o desconhecido...
 
As nossas velas latinas e quilhas, escudadas na perseverança, foram suficientemente robustas para resistir aos ventos e vagas de estibordo e bombordo.
 
À proa ou à ré, fomos hirtos para com os povos hostis. Fomos hospitaleiros para os bons que nas praças onde atracávamos, também como nós, acreditavam, tinham a fé, de que, depois da tormenta, aconteceria a bonança.
 
Na espuma dos dias, “armados” de astrolábios que nos apontavam o rumo certo, com alguns desses enfrentámos o Adamastor, vencemos o Cabo do Medo e acreditamos no Cabo da Boa Esperança.
 
Nunca esta humilde, mas honrada tripulação se considerou em cruzada contra uns quantos “piratas”. Nunca nos mares agrestes, nos cabos mais temíveis, nos ousamos considerar invencíveis ante a armada que se julgava, essa sim, invencível.
 
Nas batalhas que travámos, em nome de princípios, quantas vezes isolados num mar imenso, temores nos quiseram impor, canhões de Norte e de Oeste sobre nós cuspiram fogo e garrotes nos quiseram asfixiar.
 
Mas, à proa desta caravela, cerramos punhos, resistimos, navegámos, acreditando sempre num novo amanhecer para lá do horizonte.
 
Vencido o Adamastor, a nossa epopeia assentou âncora em porto seguro, para dar descanso a mastros e casco desgastados.
 
Nesta praça de bonança, da nossa barca partiram para destino certo os que, a bordo, connosco, na nossa esteira, ousaram vencer o Cabo das Tormentas.
 
Esses, por vontade do destino, foram chamados.
 
Dos novos “regedores” da plebe, agora conhecidos aquém e além mar, por tão heróico feito, se esperava muito.
 
Tanto da sua torre de menagem que um dia, escribas do futuro, os relatassem merecedores de honrarias pelos tributos prestados aos plebeus.
 
Recolhidos os bronzes que um dia histórico retumbaram sobre a armada invencível, para gáudio de uns quantos, no convés desta barca mantém-se quem, agora como dantes, acredita nas virtudes de um leme robusto.
 
A bordo, saradas as feridas, desfrutou-se finalmente o gozo de um novo raiar.
 
Mas os vivas à nova aurora foram calados por murmúrios na velha e altaneira torre acometida de inusitada deslembrança.
 
Pois reza esta estranha crónica que, na casca de noz, levanta-se agora a âncora, reerguem-se as velas ao vento, presas por cordas dos que acreditam que vale sempre a pena enfrentar mesmo as mais ingratas das tormentas humanas.
 
Como das outras vezes, logo que suba a maré, há que retomar a viagem, à descoberta de destinos, de ventos alísios.
 
Para lá ou para cá da linha do horizonte?
 
Só o correr dos dias, desta maresia, estranhamente tardia, há-de esclarecer.
 
Para trás ficam os humildes de tempos idos, investidos agora de honrarias “muy” grandes.
 
Bem sabemos que nos esperam novos promontórios, mares baixios ou águas tumultuosas que só timoneiros calejados por batalhas passadas poderão bordejar, na descoberta, quiçá, de novos portos seguros.
 
Diz o trovador que cartas náuticas repousam num baú no fundo do convés. Nessas, com tinta da china, ficaram registadas as rotas que um dia honrosamente gizámos por “mares nunca dantes navegados”.
 
São caminhos marítimos e destinos que um dia esta barca, se chamada por faróis de alarme, pode retomar para ajudar a vencer novos adamastores.
 
Para já, desfrutemos destes dias de névoas calmas, navegando à bolina do destino, que vamos carteando neste diário de bordo…
 
Armindo Mendes, a 16 de janeiro de 2010

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