Na Páscoa estreávamos sapatos de verniz
Armindo Mendes
A cada Páscoa que passa, regressam aquelas recordações da infância nos idos setentas.
Por aqueles dias, Páscoa significava para mim e para grande parte das crianças a ida aos padrinhos e a estreia de uma roupa nova, com uns belos sapatos de verniz comprados na feira que nos magoavam os pés.

Era sempre assim naquele domingo pascal. Tomávamos um banho reforçado, vestíamos, orgulhosos, a roupa cheirando ainda a nova, enquanto a minha mãe, atarefada, nos enfileirava para uma penteadela do cabelo tipo “lambidinho”, à custa de sucessivas imersões do pente na água do lavatório.
E, todos bonitos, entrávamos no carro do meu pai, um velho Sinca, para iniciarmos o périplo pelos padrinhos dos três filhotes da casa.
Quanto a mim, já sabia que iria receber a tradicional rosca.
Mas… ao contrário dos meus irmãos, eu recebia uma rosca de trigo, enquanto eles recebiam uma rosca de pão-de-ló, todo bem arranjado.
Confesso que me sentia discriminado, porque o pão-de-ló era mais moderno, mais chique. Mas os meus padrinhos, muito tradicionais, insistiam na oferta da rosca de trigo.
Era enorme e enfiava na minha cabeça a dita rosca, enquanto o meu padrinho ia à carteira buscar uma nota de 100 escudos, aquela que tinha a imagem do Camilo.
Já a caminho da casa dos padrinhos dos meus irmãos, eu imaginava o que iria fazer com aquele dinheiro todo… se calhar guardá-lo no porta-moedas que a minha mãe me oferecera.
Mas era a ida à casa do padrinho do meu irmão que eu gostava mais.
Ele vivia numa habitação pequena junto a um rio, afluente do Ave, que atravessava a minha aldeia. Para chegar à casa tínhamos de percorrer algumas centenas de metros num carreiro estreito e sinuoso, sempre a descer por estre arbustos e rochas de grande dimensão, enquanto o cantarolar da água do rio se aproximava, avisando-nos que estávamos a chegar.
Enquanto o meu irmão ia recebendo a bênção do padrinho e os presentes da quadra pascal, incluindo uma nota mais gorda do que a minha, eu ficava no terraço, à porta de casa, ouvindo e olhando o rio, sorrindo, feliz, sentindo um cheiro tão primaveril e fresco da vegetação que ainda hoje consigo imaginá-lo na minha memória.
Era assim todos os anos o ritual da Páscoa, o tal dia em que, na casa onde vivia, chegava sempre o compasso anunciado pela sineta ao longe.
Aqueles minutos finais de espera eram intensos, com toda a família reunida na sala, ajeitando as roupas novas.
Que emoção quando o padre entrava pela casa perfumada, que fora, mandava a tradição, minuciosamente limpa nos dias anteriores para receber o Senhor.
O padre acabava por beber um cálice de Porto e, com o seu séquito em cortejo, partia para a casa seguinte.
Depois, bom, despíamos a roupa nova e envergávamos o traje da brincadeira, porque, lá fora, a pequenada já chamava para mais uma partida de futebol de rua, na calceta do Largo de Santo António.